A HISTÓRIA DA CANJICA
Conto
Maria de Lourdes cardoso Mallmann
Desde menina eu costumava comer canjica nas noites frias, no aconchego da cozinha de fogão a lenha, onde a nossa família se reunia e os pratos de canjica eram servidos, quentes, saborosos. Era canjica com açúcar, canjica com leite, e a minha preferida era canjica com vinho.
Enquanto ao redor da mesa e do fogão comíamos, minha mãe passava as roupas da casa e contava os acontecimentos do dia e “causos” de antigamente, que nós ouvíamos extasiados.
Muitos anos depois, já casada, com dois filhos, morando em outra cidade, lembrava-me seguidamente da canjica que me parecia uma coisa que tinha ficado no passado, como os meus sonhos de adolescente, até que um dia ao voltar à tardinha do Grupo Escolar onde trabalhava como professora primária, passei pela casa da minha sogra , que era ao lado da minha, e senti o cheiro inconfundível de canjica.
- Canjica? Perguntei incrédula a mim mesma .
Entrei na cozinha e levantei a tampa da panela para certificar-me, quando Dona Julia falou:
- Estou acabando de cozinhar.
- Faz anos que eu não como canjica.
- Venha mais tarde. Em pouco tempo estará cozida e pronta para servir.
Fui até minha casa, dei banho nos meninos e esperei meu marido chegar do trabalho, ansiosa para contar-lhe que iríamos á noite comer canjica na casa dos seus pais. Quando ele chegou não pareceu muito entusiasmado com a notícia e até estranhou a minha expectativa.
- Toda essa alegria por causa de uns grãos de milho?
- Ora, não seja chato, vamos lá sim. Tua mãe está nos esperando... e eu dizia para as crianças :
- Vocês vão comer uma comida muito gostosa que a vovó fazia, vão adorar!
Depois da janta, como combinado, fomos até a casa dos meus sogros. O cheiro da canjica enchia a casa de odores. Sentamos ao redor da mesa, conversando alegremente, enquanto os pratos fumegantes eram servidos, mas fiquei decepcionada quando as crianças experimentaram e não gostaram. Mas nada impediu que eu comesse e me fartasse.
- Não sabia que gostavas tanto de canjica, disse minha sogra, nunca vi cozinhares na tua casa.
- Nunca cozinhei mesmo. Até nem sei porque. Acho que até havia esquecido que gostava tanto, até sentir esse cheiro gostoso, e voltar a ter vontade de comer.
- Vou pedir para o Amadeu trazer do mercado para teres em casa.
- Ótimo, estava mesmo pensando em comprar.
Naquela noite até não dormi muito bem porque exagerei um pouco, mas em compensação sentia-me contente como se um pouquinho da minha infância tivesse retornado.
Passaram-se alguns dias e num sábado à tarde estava tomando banho quando a minha sogra entrou em casa e indo até a porta do banheiro falou:
- Estamos voltando do mercado agora. Trouxemos a tua canjica. Deixei em cima da mesa da cozinha.
- Obrigada, já estou saindo. Não querem esperar ?
- Não, voltamos depois para tomar um chimarrão.
Saí do banheiro e fui até a cozinha e lá estava um saco de mercado com os famosos grãos amarelinhos. Era uma tarde fria. Meu marido tinha saído com os meninos para jogarem futebol numa quadra esportiva perto de casa. O fogão a lenha, que tínhamos comprado há pouco, estava com a chapa reluzindo e o fogo crepitando alegremente, envolvendo a casa toda num calorzinho delicioso.
- Está o clima ideal para a minha canjica, pensei comigo mesma, e à noite, já poderemos comê-la ao redor do fogo, como fazíamos na casa de minha mãe. Essa lembrança me pôs tão feliz que, sem titubear, passei a mão numa panela e despejei nela o saco de grãos. Coloquei água e pus no fogo, que avivei com mais uma acha de lenha.
Andei pela casa arrumando uma coisa e outra e, de repente, ouvi alguma coisa chiando...
- tchiii...tchiiii...
Era no fogão. A canjica havia crescido um pouco e a água estava derramando. Apanhei outra panela e despejei a metade dos grãos e tornei a pôr no fogo. Em poucos minutos, pois a fogo era forte, tornei a ouvir os chiados:
- trchiii...tchiiii...
Corri lá e me assustei. As duas tampas das panelas estavam levantando e os grãos, já inchados, quase saltando para fora. Abaixei-me e procurei no balcão da cozinha uma panela maior. Não tinha nenhuma maior do que as que já estavam no fogo, então peguei uma média e dividi a canjica, um pouco de cada panela e pensei:
- Agora vai dar certo!
Não passou muito tempo e as três panelas regurgitavam canjica. Parecia o milagre da multiplicação dos pães. Comecei a entrar em pânico! O que fazer? Não havia mais panelas médias ou grandes. Só a leiteira... Foi pensar e, num segundo a leiteira estava cheia de grãos a borbulhar festivamente!... Aliás, agora eram quatro panelas a borbulhar festivamente!...
A essa altura eu já não saia de perto do fogão esperando para ver se o problema estava resolvido e rezando para que ninguém chegasse e visse aquele horror de grãos levantando as tampas, que não conseguiam ficar no lugar.
A casa cheirava à canjica desde o portão de entrada até a área de serviço, mas dessa vez eu não achei maravilhoso aquele cheiro, e me perguntava:
- O que será que eu fiz de errado? Na verdade eu nunca perguntei a ninguém como se cozinhava canjica. Nunca tinha prestado atenção àquele “modo de fazer”, e nem de leve eu suspeitava que ela crescesse tanto quando cozinhava.
Felizmente, meu marido demorou a chegar e deu tempo do cozimento acabar, com uma ajudinha que eu dei, despejando uma panela inteira no vazo do banheiro e puxando a descarga, para não deixar sinal e voltando a encher a panela com o excedente das outras.
As quatro panelas agora finalmente, estavam calmas, mas cheias até as bordas de uma deliciosa canjica, que eu odiei!
Nisso ouvi vozes que se aproximavam e percebi que eram os meus sogros que chegavam pelos fundos da casa. Iam entrar pela cozinha, o que fazer?
Sem pensar duas vezes escondi três panelas de canjica dentro do balcão, deixando apenas uma em cima do fogão. Foi o tempo de fechar a porta do armário e eles estavam lá, admirando a panela sobrevivente da catástrofe de grãos.
-Já cozinhaste um pouco? Perguntou Dona Júlia, olhando a panela.
- É, resolvi fazer!...
O meu sogro então falou:
- Agora tu tens canjica para muito tempo, pois eu trouxe três quilos!
Tarde demais!